NICARÁGUA, O FILME REPETIDO DA MORTE DA DEMOCRACIA

 

Gabriel C. Salvia

(Diretor-Geral do CADAL-Centro para a Abertura e o desenvolvimento da América Latina, fundação privada argentina cuja missão é promover os direitos humanos e a solidariedade democrática internacional)
5 de julho de 2021

 

Na Nicarágua, mais uma democracia morre por dentro. Como se passou com a Venezuela desde a chegada ao poder de Hugo Chávez, em 2 de fevereiro de 1999, Daniel Ortega seguiu, nos seus segundo e terceiro mandatos presidenciais, o método de erosão da democracia até instaurar uma ditadura.

O manual para matar a democracia está sintetizado pelos autores Steven Levitzky e Daniel Ziblatt em quatro passos: 1) rejeição das regras do jogo democrático; 2) negação da legitimidade dos adversários políticos; 3) tolerância com a violência ou seu fomento; 4) predisposição a restringir as liberdades civis da oposição, incluindo as liberdades dos meios de comunicação.

O Índice Bertelsmann de Transformação analisa o estado da democracia, a economia social de mercado e a governança em países em desenvolvimento. O gráfico da evolução da Nicarágua, que retrocede ano a ano e desaba notoriamente a partir de 2018, é uma ilustração eloquente. Desde aquele ano, houve resoluções de condenação da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Mas o cenário continuou a se deteriorar, especialmente com a perseguição à oposição política, à imprensa e à sociedade civil independente.

Diante das eleições previstas para este ano, o regime de Ortega e de sua esposa Rosario Murillo já aprisionou cinco candidatos da oposição que aspiravam concorrer à presidência. O Conselho Permanente da OEA reagiu com nova resolução condenatória respaldada por ampla maioria dos países membros. Mas o gesto chega tarde.

Desde 2018, após a sangrenta repressão do governo Ortega a manifestações pacíficas que deixou dezenas de mortos, a OEA deveria ter ativado a Carta Democrática Interamericana. O terrorismo de Estado chegou ao ponto de utilizar franco atiradores para assassinar manifestantes, num nível de repressão comparável ao das ditaduras militares latino-americanas das décadas de 1960 e 1980 do século passado.

Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, instauraram uma autocracia na Nicarágua

De seu lado, as declarações em defesa da democracia da Organização de Estados Ibero-Americanos (OEI) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos y Caribenhos (CELAC), adotadas em 2010 e 2011, nunca se aplicaram ou tentaram se aplicar tanto à Nicarágua quanto à Venezuela – e muito menos a Cuba, cujo regime de partido único é o capítulo derradeiro do filme das outras duas autocracias. Este é o grande drama da América Latina: consentir com aspirantes a ditadores que vão corroendo o Estado de Direito, restringindo as liberdades civis e políticas, naturalizando a corrupção e empobrecendo seus cidadãos enquanto os amigos do poder enriquecem.

 

Tribalismo político

Um dos grandes problemas que impedem o fortalecimento e consolidação democrática na região é a divisão em “tribos políticas” que condenam certos governantes e não outros líderes autoritários, integrados à sua própria “tribo”. É o caso dos “progressistas” em relação a Cuba, à Venezuela, à Nicarágua e à Bolívia de Evo Morales. No lado oposto, é também o caso dos liberal-conservadores em relação ao uribismo colombiano, ao bolsonarismo no Brasil e às autocracias invisíveis de Honduras e da Guatemala, tal como classificadas pelo Índice de Transformação Bertelsmann em 2020.

Lula e sua sucessora Dilma Rousseff em Caracas, com Nicolás Maduro, no velório de Hugo Chávez, em março de 2013

A América Latina necessita de governantes comprometidos com a institucionalidade democrática, que criem um consenso político estendido para além da gestão econômica e social. É um avanço que a Frente Ampla uruguaia condene agora as violações de direitos humanos na Nicarágua – mas precisariam ter se pronunciado em 2018 e, mais ainda, na condição de país reconhecido internacionalmente por sua vigorosa democracia, liderado um coro de denúncias.

Similarmente, não se pode entender a consolidação autoritária do chavismo na Venezuela sem a cumplicidade ativa do PT brasileiro. É hora de Lula se pronunciar sem ambiguidades sobre seu papel político na defesa da democracia na América Latina, na hipótese de ser eleito presidente, dado o peso do Brasil na região. Do contrário, o filme se repetirá.

 

 

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