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Isolda Morillo

China imprime novo totalitarismo sustentado por rígida vigilância

Sob alçada de Xi Jinping, regime asiático se tornou mais personalista e aumentou repressão à dissidência política

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Isolda Morillo

É jornalista, escritora, pesquisadora especializa na China contemporânea e colaboradora do projeto Análise Sínica no Cadal (Centro para Abertura e e Desenvolvimento da América Latina)

Enquanto alguns observadores consideram que o regime chinês atual é totalitário, outros afirmam que se trata de um novo totalitarismo até então desconhecido. Um que demonstra flexibilidade e adaptabilidade em lugar de rigidez absoluta —razão pela qual se fala em "totalitarismo receptivo" ou "adaptativo".

Outros caracterizam a China como autoritária, regime comunista ou ditadura, enquanto os mais críticos não hesitam em chamá-la de fascista. A discussão revela a dificuldade em definir um país que é a segunda maior economia do mundo e em torno do qual estão sendo redefinidos conceitos que pareciam inconfundíveis, como democracia, direitos humanos e sociedade civil.

O líder da China, Xi Jinping, acena em Pequim pouco antes de visita oficial do presidente da França, Emmanuel Macron
O líder da China, Xi Jinping, acena em Pequim pouco antes de visita oficial do presidente da França, Emmanuel Macron - Ludovic Marin - 6.abr.23/AFP

Um sistema autoritário é, por definição, aquele que governa impondo seu poder por meio do abuso de autoridade e despotismo. Um regime totalitário o faz exercendo poder político amplo, submetendo todas as esferas sociais –privadas ou públicas— a seu domínio, para isso lançando mão de diversos métodos de repressão. O que o caracteriza é a absoluta ausência de liberdade.

Durante a era de Mao Tse-tung (1949-1976), autores ocidentais descreviam a China como um Estado totalitário. A esquerda enxergava com benevolência o nascimento dessa nova nação e aceitava o termo ditadura –mas ditadura do proletariado. Até a chegada das reformas de Deng Xiaoping em 1978, depois da Revolução Cultural, o Partido Comunista Chinês defendia o ideal maoísta da revolução mundial.

Hoje o PC deixou aqueles compromissos ideológicos para trás e foca políticas nacionalistas e a abertura econômica, juntamente com seu capitalismo de Estado e seu socialismo de características chinesas.

Desde a chegada de Xi Jinping ao poder, em 2012, o "pensamento de Xi" é a nova doutrina do regime, sob a qual o PC voltou a endurecer o controle. Após abolir o limite de dois mandatos, Xi pode virar líder vitalício para cumprir a promessa de "rejuvenescimento", "reunificação nacional" e realização do "sonho chinês".

Ele apela ao sentimento nacionalista para corrigir uma anomalia histórica. Essa anomalia, que a propaganda oficial chinesa apresenta como o "século da humilhação", tem suas raízes na primeira Guerra do Ópio (1839-1842) e marcou o início de um século de derrotas militares diante do Ocidente e do Japão, tratados desiguais, concessões territoriais e mal-estar social que culminou com a queda da dinastia Qing.

Assim, a base do nacionalismo atual tem como objetivo o restabelecimento do país como potência mundial e o término de uma vez por todas da ferida da humilhação do passado.

Muitos paralelos são traçados entre Xi e Mao, e, apesar das análises que enxergam semelhanças no poder absoluto de ambos, a comparação não é de todo acertada. Xi assume o partido num momento de turbulência. Nos anos anteriores à sua chegada ao poder, as diferentes vertentes que desde 1978 compartilhavam o poder no Comitê Central do Politburo se enfrentaram em disputas fratricidas.

Com a consciência de que as guerras internas colocavam em risco a estabilidade do regime, Xi lançou expurgos disfarçados de campanhas de combate à corrupção para afastá-las dos altos escalões do partido e, assim, concentrar-se em sua promessa de construir o "sonho chinês".

O surgimento de um "homem forte" para dirigir o país vem da necessidade de união do partido, de estabilidade política, do desafio de resolver as contradições internas de sua sociedade e de fazer frente aos crescentes desafios externos, entre os quais a rivalidade com os EUA.

A eliminação da "pluralidade política" na cúpula do PC e o controle crescente sobre a sociedade chinesa respondem às necessidades de uma época muito mais complexa que a de Mao e da Guerra Fria.

Xi agora está diante de desafios enormes, e um deles reside nas contradições presentes em seu próprio país. Embora o Partido Comunista goze de certa legitimidade graças ao desenvolvimento econômico das últimas décadas e do cumprimento de certas tarefas históricas, continua a ser muito questionado e desafiado por uma sociedade que tem necessidades renovadas em matéria de liberdades políticas e intelectuais, inerentes a uma classe média crescente de cerca de 400 milhões de pessoas –um terço da população— e a um setor privado responsável por quase metade da economia.

Por isso, o PC reprime a dissidência em nome da estabilidade política e da harmonia social, noções que são caracterizadas como garantia do cumprimento do contrato social entre o partido e o povo.

O que torna o regime de Xi imensamente impopular é que ele não só expurgou adversários políticos no partido, mas também reprimiu brutalmente qualquer expressão de dissidência. Desde que Xi assumiu, o número de defensores de direitos humanos, dissidentes e vozes críticas, incluindo advogados e ativistas, detidos e condenados à prisão supera de longe os dos dois líderes anteriores, Hu Jintao e Jiang Zemin.

Essas políticas repressivas têm conseguido conter as vozes dissidentes. Assim se visualiza uma população que tem reivindicações legítimas e que poderia se revoltar com um Estado e um partido que procuram exercer controle total sobre todos os aspectos da sociedade.

Quando visitamos a China, é fácil reconhecer a dicotomia desse sistema. Imperam o governo de partido único, a utilização da propaganda política, o culto à personalidade, a censura e a vigilância maciças e também são visíveis milhões que reivindicam mais liberdades individuais e uma sociedade mais justa.

Depois de mais de 70 anos no poder, o PC Chinês criou um sistema híbrido no qual se alternam etapas de maior abertura com outras de controle político rígido, em que as diferentes regiões gozam de graus distintos de liberdade e alguns grupos estão sob controle maior que outros.

É o caso da repressão movida contra as minorias étnicas, como tibetanos e uigures. Um governo que controla os meios de comunicação, pratica censura, prende e silencia jornalistas e ativistas que criticam o governo, usa as tecnologias mais avançadas para vigiar os movimentos de seus cidadãos, restringe a atividade na internet e não permite debate público nem competição política livre e aberta nos faz entender que estamos diante de um regime altamente totalitário.

Por tudo isso, a China é sem dúvida um dos regimes totalitários da história, mas não tanto por sua intensidade totalitária, pois não tem nada a invejar de seus predecessores Mao e Stálin, quanto por sua eficácia. Com a ajuda da tecnologia avançada e do controle digital, o regime implantou a mais rígida vigilância da população e representa uma ameaça efetiva a qualquer força que tente desafiá-lo.

Mas é importante reconhecer o grau de complexidade na natureza do regime totalitário de Xi e da China atual. Tomando emprestado o conceito de adaptação proposto pelo acadêmico David Shambaugh mais de uma década atrás em seu estudo sobre o PC, podemos concluir que o regime atual, embora seja muito rígido e inflexível, não perdeu completamente sua capacidade de adaptação.

Não é fácil prever quão poderosa será essa nova forma de totalitarismo, mas, dada sua força atual e a aceitação de Xi no partido, é provável que se consolide completamente.

Tradução de Clara Allain

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