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Relação de Brasil e China reside às sombras de um comércio sem teto

Pequim e Brasília precisam pautar negociações de forma que considere a preservação da Amazônia

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Heriberto Araujo

Jornalista especializado na internacionalização do Brasil e da China, e colaborador do projeto Análisis Sínico em www.cadal.org

Brasil e China têm uma das relações comerciais mais dinâmicas do mundo. Em apenas duas décadas, o saldo da balança comercial cresceu mais de 20 vezes, atingindo US$ 150 bilhões em 2022. São laços lucrativos para Brasília, que tem um excedente de US$ 30 bilhões. No entanto, esse comércio não é isento de riscos, pois a produção de gado e de soja provoca o desmatamento da Amazônia. Se Pequim não agir para limpar as suas cadeias de abastecimento, o gigante asiático poderá consolidar-se como um local de despejo de produtos contaminados pela destruição ambiental e por abusos sociais.

Em março, pouco depois de o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ter sido obrigado a adiar a sua visita à China devido a problemas de saúde, o seu ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, aterrissou em Pequim. Acompanhado de quase uma centena de empresários do setor agrícola, Fávaro tinha a missão crucial de convencer a China a aumentar as suas compras de carne de vaca.

De terno, Xi e Lula esticam os braços para dar um aperto de mãos
Luiz Inácio Lula da Silva é recebido por Xi Jinping em Pequim - Ricardo Stuckert - 14.abr.23/Presidência do Brasil/AFP

Apenas 24 horas depois, a China respondeu às suas exigências com duas decisões importantes. Por um lado, Pequim anunciou a retirada do embargo à carne brasileira, imposto em fevereiro devido a um caso de vaca louca. Por outro lado, as autoridades fitossanitárias concederam licenças de exportação a quatro novas fábricas de carne. Trinta matadouros brasileiros estão agora autorizados a vender peças ao gigante asiático, um terço dos quais situados na região amazônica. Outros 50 aguardam a luz verde de Pequim. Em 2022, o Brasil duplicou as vendas anuais de carne bovina à China, passando de US$ 3,9 bilhões para quase US$ 8 bilhões.

No final de abril, foi o próprio Lula, já recuperado, que viajou para a China acompanhado por uma vasta delegação ministerial e parlamentar. O ponto alto da visita foi no Palácio do Povo, onde Lula se encontrou com o presidente Xi Jinping e fez uma série de declarações sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia e a influência internacional do Ocidente que causaram preocupação em Bruxelas e Washington.

"Ninguém vai proibir o Brasil de aprofundar a sua relação com a China", disse Lula, que lembrou que "o valor das nossas exportações para a China é maior do que a soma das nossas exportações para os Estados Unidos e para a União Europeia".

Os dois países assinaram cerca de 15 acordos, além de uma decepcionante declaração conjunta sobre as alterações climáticas, na qual a Amazônia não foi mencionada uma única vez. O papel da China na destruição —ou salvação— da maior floresta tropical do mundo foi ignorado.

Em 2022, o Brasil vendeu US$ 90 bilhões em mercadorias à China. Os produtos agroalimentares representaram 56% desse montante, tornando o Brasil o maior fornecedor de produtos agrícolas da China, com uma quota de mercado de 21%.

A segurança alimentar é fundamental para a estratégia nacional de qualquer país, mas no caso da China tem um significado ainda maior, uma vez que a memória da Grande Fome de 1960, quando entre 20 milhões e 45 milhões de pessoas morreram devido às políticas agrícolas desastrosas do Grande Salto em Frente, ainda está fresca na mente dos chineses.

Assim, se a China pudesse, seria autossuficiente. Mas não pode. Controla apenas 6% da água doce e 9% da terra arável do mundo. Dois fatores agravam este quadro desfavorável para o segundo país mais populoso do mundo: o aumento da procura de carne, que requer mais recursos para ser produzida, e a diminuição das terras aráveis em resultado da rápida urbanização (na última década, a China perdeu 6% das suas terras aráveis, de acordo com estudos recentes).

O produto agrícola de que Pequim mais depende é a soja, cuja produção exige grandes quantidades de água (entre 1.300 e 2.300 toneladas de água por tonelada de soja). A China utiliza esta leguminosa rica em proteínas para produzir óleo de cozinha e tofu. Mas a razão pela qual a China importa dezenas de bilhões de dólares por ano (cerca de 85% de toda a soja que consome, segundo dados oficiais) é para fabricar farinhas e rações para alimentar o seu enorme setor suíno.

Tudo isto explica por que razão, no ano passado, quase US$ 40 bilhões das compras chinesas do Brasil foram de soja e carne. Esse comércio seria um exemplo de cooperação ganha-ganha, no jargão da diplomacia chinesa, não fosse o fato de não se saber exatamente quanto dessa soja e, principalmente, dessa carne está livre de desmatamento. Uma pesquisa da Trase indica que 230 mil hectares de floresta tropical brasileira estão em risco devido à destruição causada pela demanda chinesa por soja.

A situação do setor pecuário é ainda mais preocupante. Estudos mostram que as máfias do gado são responsáveis pela maior parte do desmatamento na Amazônia, que continua em níveis recordes em pleno governo Lula. Isso porque essas máfias, que se dizem meras associações de pecuaristas, apropriam-se de áreas de florestas públicas, derrubam e queimam a floresta, falsificam documentos cadastrais e depois formam pastos para produzir gado.

Esse processo predatório de apropriação ilegal do patrimônio público é conhecido no Brasil como grilagem. Também envolve violência e expulsão de pequenos agricultores e comunidades indígenas. Para aqueles que se opõem a ele, a lei do gatilho aguarda. Não é por acaso que a Amazônia brasileira é a região do planeta onde mais ambientalistas foram exterminados na última década. Segundo a Global Witness, 290 ativistas foram mortos desde 2012 só na Amazônia.

Como maior comprador de commodities amazônicas, as empresas estatais chinesas do agronegócio que operam no terreno para garantir o seu abastecimento de soja podem implementar mecanismos transparentes para garantir a rastreabilidade dos produtos e manter máfias ambientais fora do mercado.

Isto é possível. A UE está pronta para aplicar uma lei que obriga as empresas que vendem no mercado comum a provar que produtos de base como o óleo de palma, a soja e a carne não foram produzidos em terras desmatadas a partir de 2020. Espera-se que os EUA e o Japão sigam o exemplo da Europa e apliquem leis semelhantes.

Xi Jinping deve também pressionar Lula a cumprir a sua promessa eleitoral de erradicar o desmatamento ilegal até 2030. A China também deve contribuir para o Fundo Amazônia, criado por Lula no seu governo anterior para receber fundos para operações dispendiosas de preservação da floresta. A Noruega e a Alemanha já doaram centenas de milhões de dólares, enquanto os EUA e o Reino Unido prometeram, em maio, contribuições futuras de US$ 500 milhões e US$ 100 milhões, respectivamente.

Muitos projetos chineses no exterior apresentam um padrão comum: baixos padrões e más práticas. O seu impacto na Amazônia, onde a China dá prioridade à sua segurança alimentar, é direto e terrível. Por isso, é preciso exigir que Pequim tome medidas.

A alternativa é continuar a ignorar o problema e, por meio de compras maciças, encorajar uma economia criminosa que destrói o ambiente e inflige sofrimento às populações locais. Tal como em muitas outras regiões do mundo, a credibilidade da China está em jogo na Amazônia. O reconhecimento da China como uma potência responsável ou como uma mera autocracia que apenas persegue os seus próprios interesses depende da sua atuação.

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